segunda-feira, 25 de junho de 2012

Alice


Era sexta-feira. Outra das minhas comuns manhãs banhadas pela preguiça. A última noite adiantando os artigos da editora me rendeu considerável preguiça. Minha vontade era levantar às três da tarde ou, quem sabe, ainda mais além. Passar o dia na cama talvez. Como eu costumava dizer aos meus amigos, era um ser noturno e a luz do dia nada mais me trazia além de desconforto. Independente da quantidade de vezes que eu disse isso à Alice, todo dia, às onze em ponto, ela invadia meu quarto e abria as cortinas. A luz do sol trazia um mal que era amplificado pela música alta e de péssimo gosto que aquela mulher escutava todas as manhãs.
Era uma rotina com a qual eu estava habituado. Ela, da mesma forma, já conhecia meu péssimo humor a cada abrir de cortina. Chegamos ao acordo de não discutirmos mais a respeito disso.
Ela trazia consigo a bandeja com café. Tinha sempre um sorriso no rosto e boa vontade incondicional. Era, sem sombra de dúvida, a melhor escolha que fizera em toda a minha vida. Amava aquela mulher. Estava, certamente, acordada desde as oito da manhã. Talvez mais cedo. Dispunha de uma animação considerável, à qual eu admirava sem nenhuma de inveja.
Contou-me sobre acontecimentos da manhã, fatos que vira na tv e na internet. O café, como de costume, estava saboroso. Ela sorria a cada elogio que fazia a seus dotes culinários. Um sorriso inocente, único, o qual jamais testemunhei semelhante em toda a vida. Olhava-me nos olhos, como se me admirasse tal qual eu a admirava a toda manhã. Enquanto recolhia a mesa, deu-me um beijo de bom dia e mostrou-me o terno e as chaves à minha espera. Tinha uma tarde de trabalho pela frente. Pilhas de papéis a apresentar e estresses a passar, quando minha única vontade era a de passar o dia ali, a seu lado, desfrutar do bom almoço que só ela sabia fazer, dos sorrisos que só ela sabia sorrir e histórias que contava, sempre a me fazer gargalhar. Bastava estar perto de Alice para que tudo me parecesse mais perfeito.
Almoçávamos juntos somente aos domingos. O meu costume de acordar tarde sempre foi um transtorno à nossa rotina, mas Alice entendia que eu precisava da paz que a madrugada me oferecia para que, de fato, produzisse algo de qualidade. Todo dia me acompanhava até o carro, fazia-me uma carícia e desejava um bom dia, despedindo-se com um beijo e um habitual “vai com Deus, meu anjo”, que me trazia paz ao volante.
Não era bom deixa-la só todo dia. Sabia que trabalhava demais durante todo o dia, até o momento em que eu chegava a casa; ela, a descansar sobre o sofá, e a casa abençoada pelo perfume que as mãos de fada de Alice espalhavam a cada cômodo que passava. Por vezes estava encolhida, a sentir frio, feito uma criança teimosa. Cobria-a com um lençol. Foram muitas as vezes que permaneci olhando-a a dormir. A beleza bem distribuída por cada um de seus traços, o respirar suave.
Quando acordava e me via em casa, dizia que cochilou só um pouco, após um filme chato. Fazia-lhe um cafuné e sorria, como que acreditando, ainda que a tivesse visto adormecida por horas adentro.
Com o chegar da noite, ela, sempre pontual, punha a mesa às dezenove e trinta. A cada anoitecer um jantar diferente, o mesmo sorriso que me oferecia pela manhã, a felicidade que só ela sabia me transmitir.
Após jantarmos, naquela noite, liguei o som com alguma música antiga e a chamei pra dançar. Ela hesitou por alguns minutos, mas logo cedeu. A batida leve guiava nossos passos desajeitados, enquanto eu sussurrava o quanto a amava. O quão ela era especial para mim. Podia sentir ao peito o gotejar de algumas lágrimas de satisfação, seguidas de elogio semelhante. Bebemos um bocado e gargalhamos ao sofá. Não tardou até ela cair, adormecida, ao meu colo. Podia sentir o imenso cansaço que carregava consigo após um dia de intenso trabalho. Peguei-a no colo e levei até a cama. Fazia leve frio naquela noite. Cobri-a com uma coberta leve e a observei por alguns segundos até apagar a luz. Deixei o quarto, silencioso, harmonizado pelo respirar suave de Alice.
O telefone tocou. Fui correndo em sua direção, torcendo para que o mesmo não a acordasse. Antes que o segundo toque se desse eu alcancei o gancho. Fui surpreendido pela voz do meu amor. Desejou-me boa noite. A voz trêmula, como se sentisse frio. Disse, por fim, que me esperava do lado de fora da casa. Corri na direção da porta e a abri. Lá estava ele, vestido tal qual um moleque em meio àquela noite fria. De bermuda e um tênis desamarrado, cobertos por uma blusa de frio e um capuz. Perguntou por Alice. Eu disse que já dormia, e ele entrou, beijando-me. Tivemos uma noite de profundo amor, ali mesmo, pela sala.
Um dia perfeito, eu diria.
Na manhã seguinte, às onze da manhã em ponto, a figura de Alice, irritada, abriu as cortinas do quarto, sem qualquer piedade. Perguntou a respeito da bagunça na sala, cobrando-me satisfações.  Quando expliquei, ela não mais que sorriu compreensiva. Deu-me o habitual beijo matinal e me observou comer. Parecia orgulhosa, percebia em seu rosto. Transparecia uma alegria incondicional cada vez que percebia que eu me sentia feliz. Seu sorriso destacava suas rugas e ela corava, escondendo a vergonha por trás dos cabelos brancos que colocava em frente aos olhos azuis escondidos por óculos já velhos. Alice era a mãe que nunca tive e eu o filho que ela sonhara ter. Éramos assim. Nos completávamos.